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Caro Professor Nuno Crato,
Acredite que é com imenso desgosto que lhe escrevo esta carta aberta.
Habituei-me, durante anos, a ler e a concordar com o muito que foi escrevendo sobre o estado do ensino em Portugal. Dos manuais desadequados à falta de exames capazes de avaliar o real grau de aprendizagem dos alunos; do laxismo instituído à falta de autoridade dos professores; do absoluto desconhecimento do que se passava nas escolas, por parte do Ministério da Educação à permanente falta de materiais e condições nas escolas. Durante anos, também eu me revoltei com a transformação da escola pública em laboratório de experiências por parte de políticos, pedagogos e supostos especialistas em educação. Foi por isso com esperança que me congratulei com a sua nomeação para Ministro da Educação do actual governo.
Por isso, Professor Nuno Crato, me surpreende que, à semelhança dos seu antecessores, não tenha sido capaz de resistir à tentação de transformar os seus colegas de profissão nos maus da fita, mandriões, calaceiros, incapazes de trabalhar míseras 40 horas por semana. Surpreende-me e entristece-me.
Sabe, Professor Nuno Crato, sou filho de professores e durante a minha infância e adolescência habituei-me a compartilhar o meu tempo, os meus livros, os meus cadernos e muitas vezes o meu almoço e o meu lanche, com os milhares de crianças que, ao longo de anos de esforço e dedicação, eles ajudaram a educar pelas aldeias mais recônditas do nosso país. Habituei-me a aguardar pacientemente a sua chegada tardia, os trabalhos para corrigir, as aulas para preparar, para que restasse um pedaço de tempo para uma história, uma conversa, um mimo. Nunca lhes pressenti na expressão uma nota de arrependimento, antes de felicidade, por um trabalho que adoravam fazer e que eu adorava que fizessem. E, não imagina o orgulho que sentia quando nos cruzávamos com muitos dos seus ex-alunos e lhes via no rosto uma expressão doce de eterna gratidão - Se não tivesse sido o Senhor Professor ...não sei o que teria sido de mim!
Depois, casei-me com uma professora e voltei a ter de me habituar a compartilhar o meu dia-a-dia, o meu computador, os meus tinteiros, os meus dossiers, o meu papel, as minhas canetas, com milhares de outras crianças e adolescentes. Voltei a ter de me habituar a aguardar a sua chegada tardia, os trabalhos para corrigir, as aulas para preparar. Com a diferença de agora, a tudo isso, se somarem milhares de páginas de legislação para ler, a grande maioria escrita num português que envergonharia os meus pais e grande parte dos seus ex-alunos; dezenas de relatórios para redigir; novas metodologias de ensino para estudar; manuais diferentes de ano para ano para analisar; telefonemas para pais de alunos problemáticos a efectuar; acompanhamento de alunos com dificuldades, reuniões de pais, reuniões de avaliação, reuniões de preparação, reuniões de grupo, assembleias de escola, visitas de estudo, estudo acompanhado, aulas de substituição, vigilância de exames. Confesso que ao longo dos anos, fui conseguindo roubar à escola, um pouco de tempo para mim. Mas, mesmo desse tempo roubado a custo, muito era passado a falar da desmotivação generalizada causada pelo desleixo, pela falta de objectivos, pela ausência de meios, pela violência, pela falta de autoridade, enfim, por tudo aquilo que o Professor Nuno Crato tão bem descrevia nas suas análises.
Durante estes muitos anos a viver com professores, nunca me passou pela cabeça perguntar-lhes quantas horas trabalhavam. Mas, fazendo um esforço de memória, sou capaz de contabilizar os milhares de horas que o seu trabalho para a escola roubou à minha família. Os milhares de refeições em conjunto que não se realizaram, os milhares de conversas que não pudemos ter, os milhares de madrugadas passadas em claro, os milhares de filmes que não vimos juntos, os milhares de musicas que não ouvimos, os milhares de livros que não lemos, os milhares de passeios que não demos.
Não sei se esses milhares e milhares de horas perfazem as tão badaladas 40 horas de trabalho por semana que agora se discutem, mas sei que se fosse professor estaria a favor dessas 40 horas de trabalho semanais, desde que realizadas integralmente na escola, sem nunca mais, ter de trazer trabalho para casa, de gastar uma gota de tinta do tinteiro da minha impressora, de ocupar um byte de memória do meu computador, de usar uma folha da minha resma de papel, de ocupar a minha sala com trabalhos de alunos, de perder as minhas noites, os meus fins-de-semana, os meus dias de descanso com a preparação de aulas, reuniões ou relatórios. Se assim for, pelo menos, numa coisa os professores passarão a ser efectivamente iguais a todos os outros funcionários públicos, que deixam o seu trabalho e os seus problemas laborais na porta de saída da repartição.
Infelizmente não acredito que assim seja e o que acontecerá é que os milhares de professores, mal pagos, mal amados, maltratados, continuarão a acumular às 40h que agora se pretendem instituir, milhares e milhares de horas de trabalho gratuito roubadas às suas famílias, ao seu descanso, ao seu lazer, pelo simples motivo de se orgulharem de ensinar e não permitirem que os mesmos políticos, pedagogos e supostos especialistas em educação instalados no Ministério há anos, destruam a essência da sua profissão.
Caro Professor Nuno Crato, é por isto que os seus colegas de profissão estão em greve e não entender isto é não entender nada sobre educação. Por isso, não se admire se um destes dias forem eles a fazer aquilo que o professor tanto prometeu, mas não teve coragem de cumprir: implodir o Ministério da Educação em defesa da educação em Portugal.