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"Os diletantes são-no geralmente de ideias ou de emoções - porque para compreender todas as ideias ou sentir todas as emoções basta exercer o pensamento ou exercer o sentimento, e todos nós, mortais, podemos, sem que nenhum obstáculo nos coarcte, mover-nos liberrimamente nos ilimitados campos do raciocínio ou da sensibilidade.” Eça de Queiroz

Carta aberta ao Professor Nuno Crato

João A. Moreira, em 14.06.13

Caro Professor Nuno Crato,

Acredite que é com imenso desgosto que lhe escrevo esta carta aberta.

Habituei-me, durante anos, a ler e a concordar com o muito que foi escrevendo sobre o estado do ensino em Portugal. Dos manuais desadequados à falta de exames capazes de avaliar o real grau de aprendizagem dos alunos; do laxismo instituído à falta de autoridade dos professores; do absoluto desconhecimento do que se passava nas escolas, por parte do Ministério da Educação à permanente falta de materiais e condições nas escolas. Durante anos, também eu me revoltei com a transformação da escola pública em laboratório de experiências por parte de políticos, pedagogos e supostos especialistas em educação. Foi por isso com esperança que me congratulei com a sua nomeação para Ministro da Educação do actual governo.

Por isso, Professor Nuno Crato, me surpreende que, à semelhança dos seu antecessores, não tenha sido capaz de resistir à tentação de transformar os seus colegas de profissão nos maus da fita, mandriões, calaceiros, incapazes de trabalhar míseras 40 horas por semana. Surpreende-me e entristece-me.

Sabe, Professor Nuno Crato, sou filho de professores e durante a minha infância e adolescência habituei-me a compartilhar o meu tempo, os meus livros, os meus cadernos e muitas vezes o meu almoço e o meu lanche, com os milhares de crianças que, ao longo de anos de esforço e dedicação, eles ajudaram a educar pelas aldeias mais recônditas do nosso país. Habituei-me a aguardar pacientemente a sua chegada tardia, os trabalhos para corrigir, as aulas para preparar, para que restasse um pedaço de tempo para uma história, uma conversa, um mimo. Nunca lhes pressenti na expressão uma nota de arrependimento, antes de felicidade, por um trabalho que adoravam fazer e que eu adorava que fizessem. E, não imagina o orgulho que sentia quando nos cruzávamos com muitos dos seus ex-alunos e lhes via no rosto uma expressão doce de eterna gratidão - Se não tivesse sido o Senhor Professor ...não sei o que teria sido de mim!

Depois, casei-me com uma professora e voltei a ter de me habituar a compartilhar o meu dia-a-dia, o meu computador, os meus tinteiros, os meus dossiers, o meu papel, as minhas canetas, com milhares de outras crianças e adolescentes. Voltei a ter de me habituar a aguardar a sua chegada tardia, os trabalhos para corrigir, as aulas para preparar. Com a diferença de agora, a tudo isso, se somarem milhares de páginas de legislação para ler, a grande maioria escrita num português que envergonharia os meus pais e grande parte dos seus ex-alunos; dezenas de relatórios para redigir; novas metodologias de ensino para estudar; manuais diferentes de ano para ano para analisar; telefonemas para pais de alunos problemáticos a efectuar; acompanhamento de alunos com dificuldades, reuniões de pais, reuniões de avaliação, reuniões de preparação, reuniões de grupo, assembleias de escola, visitas de estudo, estudo acompanhado, aulas de substituição, vigilância de exames. Confesso que ao longo dos anos, fui conseguindo roubar à escola, um pouco de tempo para mim. Mas, mesmo desse tempo roubado a custo, muito era passado a falar da desmotivação generalizada causada pelo desleixo, pela falta de objectivos, pela ausência de meios, pela violência, pela falta de autoridade, enfim, por tudo aquilo que o Professor Nuno Crato tão bem descrevia nas suas análises.

Durante estes muitos anos a viver com professores, nunca me passou pela cabeça perguntar-lhes quantas horas trabalhavam. Mas, fazendo um esforço de memória, sou capaz de contabilizar os milhares de horas que o seu trabalho para a escola roubou à minha família. Os milhares de refeições em conjunto que não se realizaram, os milhares de conversas que não pudemos ter, os milhares de madrugadas passadas em claro, os milhares de filmes que não vimos juntos, os milhares de musicas que não ouvimos, os milhares de livros que não lemos, os milhares de passeios que não demos.

Não sei se esses milhares e milhares de horas perfazem as tão badaladas 40 horas de trabalho por semana que agora se discutem, mas sei que se fosse professor estaria a favor dessas 40 horas de trabalho semanais, desde que realizadas integralmente na escola, sem nunca mais, ter de trazer trabalho para casa, de gastar uma gota de tinta do tinteiro da minha impressora, de ocupar um byte de memória do meu computador, de usar uma folha da minha resma de papel, de ocupar a minha sala com trabalhos de alunos, de perder as minhas noites, os meus fins-de-semana, os meus dias de descanso com a preparação de aulas, reuniões ou relatórios. Se assim for, pelo menos, numa coisa os professores passarão a ser efectivamente iguais a todos os outros funcionários públicos, que deixam o seu trabalho e os seus problemas laborais na porta de saída da repartição.

Infelizmente não acredito que assim seja e o que acontecerá é que os milhares de professores, mal pagos, mal amados, maltratados, continuarão a acumular às 40h que agora se pretendem instituir, milhares e milhares de horas de trabalho gratuito roubadas às suas famílias, ao seu descanso, ao seu lazer, pelo simples motivo de se orgulharem de ensinar e não permitirem que os mesmos políticos, pedagogos e supostos especialistas em educação instalados no Ministério há anos, destruam a essência da sua profissão.

Caro Professor Nuno Crato, é por isto que os seus colegas de profissão estão em greve e não entender isto é não entender nada sobre educação. Por isso, não se admire se um destes dias forem eles a fazer aquilo que o professor tanto prometeu, mas não teve coragem de cumprir: implodir o Ministério da Educação em defesa da educação em Portugal.

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93 comentários

De tempocurto a 19.06.2013 às 15:43

Não conhecia este blog, mas uma amiga fez-me chegar por e-mail esta carta aberta e a referência ao blog onde estava publicada. Por isso aqui cheguei.
Esta carta não diz tudo? Claro que não. Mas diz a maior parte do que é necessário perceber sobre a vida de um professor, que honre a profissão que exerce.
Não diz tudo, porque não fala da realidade dos alunos e do espaço escolar dos dias de hoje.
Não diz tudo, porque não revela o quanto é ingrato (como em todo o sistema público) ver docentes dedicados, altamente profissionais, altruístas, esforçados, dedicados aos problemas dos seus alunos e aos que, não sendo seus, são da escola e por isso merecedores de quem defenda os seus direitos, serem professores preteridos, maltratados até, em desfavor de gente que, não sendo competente, cai nas boas graças de directores de agrupamento, incapazes, insensíveis e abstrusos.
Olhando para a realidade de algumas escolas/agrupamentos, percebe-se porque é que a opinião pública não se revê nos professores de hoje. Não se revê, porque os competentes, capazes, dedicados e que retiram à sua família dezenas de horas semanais, para que o seu trabalho esteja bem preparado e os seus alunos bem servidos, e retira do seu bolso o necessário para que alunos das suas turmas tenham material, e aulas como devem ser, são atropelados por direcções mentecaptas e incompetentes, que não gostam e não querem que estes professores tenham visibilidade. Como incompetentes que são (alguns, desses, estão nas direcções dos agrupamentos, nos ministérios, nos sindicatos, etc. exactamente por serem maus profissionais e não saberem nem gostarem de ensinar), protegem e rodeiam-se de outros tantos também pouco competentes, pouco cumpridores e sem brio profissional. Porque, para se disfarçar a nossa incompetência, necessariamente deveremos estar rodeados de gente igual ou pior que nós. Não sabe ensinar? Não tem importância, desde que saiba disfarçar a coisa e tenha paleio e capacidade de ludibriar pais e alunos. Com essa capacidade, torna-se rapidamente um bom elemento para complementar as equipas de “amigos” e “seguidores” ou “aproveitadores” destas direcções incapazes e incompetentes (porque, não sabendo fazer, não sabem gerir para que se faça bem), que grassam pelos agrupamentos do país, e que, sendo cada vez em maior número, ajudarão o ministério a “matar” a escola pública.
A incompetência não está só no ministério, está também nas escolas. E é nas escolas que ela se torna mais perigosa. Cada vez mais, a força das decisões num agrupamento, vem de grupos de pressão, dentro dos próprios agrupamentos. E, regra geral, esses grupos de pressão são minorias de professores, que, centrados em interesses distantes da competência e do profissionalismo, manobram, manipulam e agregam, numa óptica de DIVIDIR PARA REINAR. Caso esta gente, numa qualquer escola, encontre uma direcção com a mesma mentalidade, os PROFESSORES DEDICADOS, COMPETENTES E DE VALOR, estão TRAMADOS, pois transformam-se rapidamente em gente que incomoda e, por isso mesmo serão alvos a abater.
Portanto, não é apenas o governo que mata a escola pública. Quem mata a escola pública é a incompetência que também grassa nas escolas (embora ainda em minoria) e que se esforça para tomar conta dela, empurrando para fora da mesma os que, pela competência, pelo esforço e pela vontade, incomodam poderes instalados ou a instalar.
E o pior de tudo, é que, na hora de dispensar professores, NÃO HÁ GARANTIA DE QUE SERÃO OS COMPETENTES A FICAR, pois como em tudo na vida, há os que nasceram para ensinar, e os que, na mesma profissão apenas nasceram para “sobreviver”. Um dia destes, a escola pública livrar-se-á dos competentes e capazes (como os políticos de hoje já fizeram com os governos, em que só lá está se não for capaz) e ficará repleta de sobreviventes inaptos e incapazes, que servirão de desculpa para o desmantelamento da mesma.
Pena é que o ministro Crato visse isto antes de ser ministro e hoje tenha trocado de lentes.

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